domingo, 23 de julho de 2017

VERÃO KODACHROME


Alfeizerão, 1978. Não sei quem tirou esta fotografia na aldeia onde nasceu o meu Pai. Terras do «oeste selvagem» cuja macieza apenas reconheci no seu afamado pão-de-ló. Não tenho uma data certa, mas talvez tenha sido na Primavera e ainda fizesse frio, porque estamos todos vestidos de camisolas de gola alta e calças de fazenda, uma violência estranha às actuais crianças da fofinha geração Zippy. O que mais me comove na imagem, além do cheiro a campo que se intromete pelos fingimentos da memória, é esta evidente ausência de encenação para a objectiva. Ninguém quis saber de ninguém, ainda que haja uma coerência implícita. Mas parecemos um punhado de moedas atiradas ao ar, caídas no mesmo sítio, ao acaso, à sorte, ao azar. O meu primo Carlitos, "o ruço", a segurar a bicicleta, lembra-me uma personagem seráfica de um filme de Luchino Visconti. A seguir, vestido de camisola azul-marinho e emblema vermelho, o Fernando Pedro ergue o punho no ar como se levantasse as canções esquerdistas da época: Bella Ciao, Nicaraguita, Bandera Rossa e outras que tais. Os minorcas na linha da frente - respectivamente, o meu primo Pedro e minha mana mais nova -, ele ajoelhado e ela segurando um ramo de flores silvestres, parecem saídos de um romanceiro para crianças (je ne sai pas quoi dire, c'est si beau). Intencionalmente, deponho flores amarelas sobre a careca do nosso Pai, qual fã de Scott McKenzie e filha de São Francisco e do Verão de 1967. Isto agora podia para dar a lamechice e eu diria: que saudades tenho deste tempo... Mas não. Não. O Verão é agora.

quinta-feira, 20 de julho de 2017

POSTAIS DE BAMBERG


O Google Photos lembra-me que há um ano estava na pitoresca (adoro esta palavra) cidade de Bamberg, para o último dia da tournée por escolas da Baviera, a convite do Festival White Ravens 2016. A sessão da manhã, na escola de artes E.T.A. Hoffmann, com miúdos de 16/17 anos, motivados e curiosos, foi mesmo a melhor de todas. Na escola seguinte levei um balde de água fria, com os putos a debandarem em grupinhos perante a passividade dos professores. Tive ser eu a pôr os pontos nos "is". Isto é só para não pensarem que lá fora é que é.

terça-feira, 18 de julho de 2017

QUANDO FOMOS MONSTROS


Foi assim a nossa Oficina de Férias no espaço Anagrama, onde durante uma semana provocámos a libertação dos nossos pequenos monstros, em parceria criativa. A Marta Alves, formada em arquitectura, deu aos miúdos ferramentas de ilustração e design gráfico; eu levei alguns livros e ajudei-os a construir uma história à volta de um tema sempre frutífero: os monstros. Nem todos são feios nem assustadores; alguns têm asas e fazem bem às pessoas. Os miúdos, todos à volta dos dez anos, estavam altamente motivados e chegaram a não querer ir brincar para a rua só para continuarem o que estavam a fazer. Inédito! Não se inscreveram por imposição dos pais (importante), trabalharam sempre e com muito entusiasmo. Cansaram-se mais com a parte da planificação, o esboçar e o "passar a limpo", mas isso é normal (também eu me canso...). Inventaram histórias diferentes, imaginativas, tristes, engraçadas, e todas elas cheias de significado pessoal. No fim, levaram um livro artesanal para casa. Esta semana paramos, mas de 24 a 28 de Julho teremos outra oficina de verão: «Zen Criativo». Saiba mais aqui.

CONTADEIRAS DE HISTÓRIAS EM ÓBIDOS


Encontram-se nas livrarias e lojas «especiais», um pouco por todo o lado. As Contadeiras de Histórias, um projecto criativo que envolve pequenas figuras feitas à mão em microcenários e micronarrativas, está em exposição na Casa Romântica - Galeria de Arte, com os originais do livro, ilustrações e peças de artesanato, ilustrações originais. Bom pretexto para um passeio a Óbidos.

segunda-feira, 17 de julho de 2017

O COMEÇO DE UM LIVRO É PRECIOSO, 31


«Sou constantemente assaltado por memórias de sítios onde vivi, as casas e os bairros. Por exemplo, há um prédio vermelho de arenito, nas East Seventies, onde, no princípio da guerra, aluguei o meu primeiro apartamento em Nova Iorque. Era uma assoalhada atravancada de mobílias de sótão, um sofá e grandes cadeiras estofadas daquele veludo vermelho desbotado tão característico, que geralmente se associa aos dias de calor dentro de um comboio. As paredes eram de estuque, de uma cor de seiva de tabaco. Por toda a parte, até na casa de banho, havia gravuras de ruínas romanas acastanhadas pelo tempo. A única janela dava para uma escada de incêndio. Mesmo assim, ficava bastante eufórico quando sentia no bolso a chave para aquele apartamento tão esconso e sombrio; não deixava de ser um sítio meu, o primeiro, e tinha lá os meus livros e colecções de lápis por afiar, tudo o que precisava, julgava eu, para me tornar o escritor que queria ser.»

Truman Capote, Breakfast at Tiffany's (Boneca de Luxo), ed. Dom Quixote, 2009. Tradução de Margarida Vale de Gato. Originalmente publicado em 1958.


quarta-feira, 5 de julho de 2017

ROBIN HYDE, JOAN OF ARC


Não conheço nenhuma tradução para português desta mulher invulgar que escolheu o nome literário de Robin Hyde, evasivo e misterioso como os seus poemas. Nasceu em Cape Town, na África do Sul, em 1906, mas viajou com os pais para a Nova Zelândia quando tinha apenas um mês. Viveu sempre no limiar da sobrevivência, como jornalista e escritora, numa época e num país onde não era fácil ser mulher (mas alguma foi?). Interessou-se pelos direitos dos maoris, cujo estatuto de povo colonizado comparava ao do género feminino. Teve um filho que entregou para adopção, por não ter condições mínimas de o manter. Não gozava de boa saúde e acabou por se submeter a tratamento psiquiátrico, no Auckland Mental Hospital. Ironicamente, foi essa oportunidade de ter um quarto que fosse seu (para usar a expressão da sua contemporânea, Virginia Woolf), que lhe permitiu escrever, em quatro anos, sob o encorajamento dos médicos, três romances e dois livros de poesia, além de crónicas e reportagens. Escreveu muito sobre os proscritos da sociedade, numa busca de respostas que reflectia as suas próprias perdas, o seu desamparo e a sua quase indigência material. Os amigos foram o maior apoio, mas não conseguiram evitar o suicídio de Robin Hyde, aos 33 anos, a 23 de Agosto de 1939. A Segunda Guerra Mundial estava prestes a eclodir e ela estava em Londres. Um representante do governo da Nova Zelândia tinha ido buscá-la ao quarto onde morava, nesse mesmo dia, com o intuito de a repatriar. Falhou por umas horas.


Joan of Arc

It is for me to dare, whilst others dream.
Pity, my God, on all bewildered fools
Who must affront grave order, steadfast rules
Mellowed by centuries! How vain and crude
Will seem my tossing torches, in this town
Whose carven saints with quiet eyes gaze down
Into the sliding river. Wise friends above,
Had you but taught God's nobler name is Love.

What if the pity in my heart has wrung
Silence to speech, the semblance of a tongue
Given to meadowsweet, to brook and tree?
What matter? Many faces lift to me
Their ancient loss and evil. Have I choice,
Save to stand firm, and cry, "Thus speak the Voice"?
Some love me, some will mock... for I am young...
I think that they will doom me at the last.
All but the scent of grasses will glide past,
All but the quiver in my tree will cease...
God send, I flung the starved some shred of peace.

(in The Conquerors and Other Poems, originalmente publicado em Londres pela Macmillan, 1935.)

segunda-feira, 3 de julho de 2017

DO AMOR


«Será o amor uma arte? Se o for, então exige conhecimento e esforço. Ou será o amor uma sensação agradável, que por acaso experimentamos, algo que "nos acontece" se tivermos sorte? Este pequeno livro parte da primeira premissa, embora não haja dúvida de que a maioria das pessoas hoje em dia acredita nesta última.

Não é que as pessoas pensem que o amor não é importante. Elas estão sequiosas de amor; vêem inúmeros filmes sobre histórias de amor felizes e infelizes, ouvem centenas de canções "lamechas" sobre amor - e contudo quase ninguém acredita que é preciso aprender seja o que for sobre o amor.

Esta estranha atitude baseia-se em diversas premissas que, isoladas ou em conjunto, tendem a confirmá-la. A maioria das pessoas encara o problema do amor como sendo uma questão de ser amado, e não de amar, da capacidade de amar. Daí que, para elas, o problema consista em como ser amado, como ser amável. (...)»

Erich Fromm, A Arte de Amar (The Art of Loving), ed. Pergaminho, 2008. Originalmente publicado em 1956.