terça-feira, 7 de abril de 2015

QUE ESTREASTES NA PÁSCOA?


Nini era a minha Anita. Traços finos, guarda-roupa de princesa, uma casa cor-de-rosa com jardim algures em Friestas ou Troporiz, protegida por persianas douradas e fenêtres de inspiração emigrante. Nini, de seu verdadeiro nome Maria Augusta, ocupava o topo da pirâmide social na nossa turma de miúdos pobres e remediados, numa posição inversamente proporcional à da Lurdinhas, que chegava à escola com as roupas sujas e rotas, as mãos feitas numa chaga pelas frieiras invernais. Era linda, a Lurdinhas, louríssima e sardenta, de olhos verdes, uma minhota típica, descendente dos genes celtas de antanho. Era linda, mas por baixo do ranho e da porcaria não dava para perceber grande coisa. Nini, pelo contrário, sempre impecável, todos lhe queriam dar a mão nos jogos de roda. Um dia, perguntou-me, «o que estreastes na Páscoa?», e eu, que nem um boi a olhar para um palácio, não soube o que lhe responder. Não sabia do que ela falava. Em minha casa estreava-se roupa no Natal e no dia dos anos, lá vinha uma camisola interior que picava quando fazia falta, um par de meias, um casaco, nada que justificasse tamanha solenidade: «O que estreastes na Páscoa?». Nunca me esqueci da pergunta da Nini nem do meu silêncio envergonhado.

Nini, onde quer que estejas, fica a saber que esta Páscoa estreei uma écharpe de pirata, um jardim de crisântemos, uma rosa do deserto, um baloiço na cerejeira, um túnel secreto, uma lua cheia, um punhado de dólares, um duelo em OK Corral, sete sultões do swing, um verão passado, algumas coisas selvagens, um coração quase novo, um relógio avariado, um teclado AZERT, um boulevard de Eugène Atget, vinte colchões e uma ervilha, um gato azul e outros de cor incerta, e assim de repente é do que me lembro. Tua amiga, C.

1 comentário:

YellowMcGregor disse...

... e a Nini ficaria num silêncio envergonhado.

... e eu aqui roídinho de inveja.


Com um ramo de :-)