quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

ALL CREATURES GREAT AND SMALL



Éramos quatro menos um. Vivíamos com pouco, mas havia sempre quem tivesse menos do que nós. Os invernos eram duros e nunca mais acabavam. Chovia o tempo todo. A água gelava nos canos, doía na garganta e nos dentes. Saíamos de manhã, entorpecidas pelo frio, a geada feita em cristais sobre as folhas e o ar limpíssimo, de cortar a pele. Acendíamos a lareira para nos aquecermos. Sentávamo-nos junto daquele coração de fogo a pulsar, tecendo fios e nós invisíveis. Porque nós éramos invisíveis, sobretudo quando nos juntávamos para fazer as contas do mês: quatro menos um (não dava certo). Comíamos iscas de fígado, ovos com mioleira, mão de vaca com grão, fanecas e carapaus; comidas de panela e de sertã. Felicidade era quando a nossa Mãe fritava bolo do tacho em banha derretida, só com farinha de milho, água e toucinho. Felicidade era receber um livro ou um jogo fora do Natal ou do aniversário. Felicidade era ter cinco anos e andar à solta nos pinhais, como um cabrito, iludindo o medo dos cães e dos lobisomens. Felicidade era quando ligávamos o televisor e víamos juntas a série Veterinário de Província na televisão a preto e branco. Bezerros acabados de parir, cavalos com cascos infectados, cães de pêlo dourado e doenças melancólicas: alguém cuidaria deles, alguém chegaria a tempo de os curar, sim. O Yorkshire dos anos 30 não era assim tão diferente do Alto Minho. As estradas com ravinas tão verdes e as quintas cinzentas onde se queimava carvão, os montes e os vales profundos, animais e pessoas partilhando o mesmo quotidiano, a mesma comunidade dos sobreviventes. Estávamos em finais dos anos 70 e eu não sabia o que era o estilo arquitectónico jorgiano, mas gostava de ter uma casa assim, cheia de quadros e chávenas de chá; e gostava de ter alguém por perto que usasse chapéus e casacos de tweed; que fosse bondoso, tranquilo, bem-disposto e um pouco desajeitado como a personagem de James Herriot, alguém que tivesse olhos claros e um sorriso franco. Sempre admirei quem tem o poder de curar, curar com paciência e amor todos os seres vivos, all creatures great and small.

1 comentário:

alfacinha disse...

Um médico faz as vezes milagres
abraço