sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

MANEIRAS DE SER MENINO


   «Meninos da rua. Bulhentos, sujos, execrados. Escorregam nas escadinhas do bairro em tábuas roubadas a vedações, pondo à roda a cabeça das vizinhas velhas. Urinam nos portais. Viram caixotes do lixo. Vendem pentes. São presos às vezes.
   Meninos da serra. Acanhados, desconfiados, lentos. Têm dez, doze irmãos. Não gostam de doces. Estudam na escola a nascente e a foz dos rios, e nunca viram o mar.
   Meninos pastores. Solitários. Sabem histórias medonhas de lobos e de bruxas. Guiam-se pelo Sol. Guardam no bolso o Universo num ovo de pisco, num seixo vidrento, num saltão todo verde.
   Meninos filhos de pescadores. Olhos de alga, corpo de onda, voz de vento. Embalados em canastras ou ao colo de velhas redes, seus sonhos cabem num barco. E como nada os espanta e nada os amedronta, nem chegam a ter infância.
   Meninos ciganos. Nascidos e criados à borda dos caminhos. Alimentam-se de bagas silvestres e de rábanos como os cavalos. De pele da cor da terra, têm gestos fugidios de cobra e olhos de noite e de mistério. E a sua alma é antiga como a própria raça.»

(...)

Maria Ondina Braga, «Maneiras de ser menino», crónica incluída no livro A Revolta das Palavras, ed. Livraria Bertrand, 1975.

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