sexta-feira, 5 de maio de 2017

NOCTURNO EM SOL MAIOR

 
Noite Estrelada, de Jimmy Liao (n. 1958, Formosa), abre com uma dedicatória dirigida aos leitores: «Para as crianças que não se sentem em sintonia com o mundo.» Mas Jimmy Liao não é «apenas» um autor de livros para crianças, e por isso esta dedicatória tem um valor metonímico, capaz de tocar adultos que também não se sentem em sintonia com o mundo. Ou seja, uma imensidão de leitores.

Sem prescindir da palavra, mas concentrando-se no seu enorme talento enquanto ilustrador, os três livros já traduzidos pela Kalandraka (Desencontros, Segredos na Floresta e O Peixe que Sorria) são portadores de temas universais não circunscritos ao destinatário infantil: a identidade, a solidão, o amor, a amizade, a estranheza do ser humano dentro de si próprio e perante um mundo que por vezes é hostil e, outras vezes, representa a possibilidade da serenidade individual e da união com o outro.

Sempre numa linha ambígua onde a sugestão onírica se funde com as fronteiras do real, Noite Estrelada (The Starry Starry Night, no original) aprofunda esses temas e leva mais longe as intertextualidades plásticas; desde logo presentes no título e na belíssima imagem de capa, uma referência direta ao quadro de Van Gogh, Noite Estrelada (The Starry Night). Os protagonistas são dois pré-adolescentes, uma rapariga e um rapaz que a princípio se desconhecem, e cuja aproximação decorre da sua condição de seres inadaptados. Nem a escola nem a casa familiar equivalem a lugares seguros, e as barreiras da comunicação entre adultos e crianças revelam-se a cada passo: «Adoro a minha mãe e ela adora-me. Mas ela não me compreende, e também não me parece que eu a compreenda.» A deriva da adolescência pode ser sintetizada nesta bela frase: «Era como uma planta a crescer num labirinto, sem se preocupar com o lado da saída.»

Sobre este fundo de inquietação e desajuste, Jimmy Liao elabora o acaso feliz de um encontro que eleva os protagonistas acima da superfície mundana, emprestando-lhe o dom dos flâneurs sem tempo nem idade. Juntos, empreendem uma viagem que reflete o contraste entre a cidade e o campo, em direção à casa de um avô já desaparecido, mas cuja memória ecoa na escuridão da noite interior. A descoberta mútua não se faz sem iludir a perda; ainda que, mais à frente, o fundamental seja recuperado. Como sempre se deseja.

Noite Estrelada
Jimmy Liao
Kalandraka 

(in LER nº 145) 

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