sexta-feira, 17 de julho de 2015

GRANDE AFONSO



Afonso Cruz venceu esta semana a 19ª edição do Prémio Nacional de Ilustração com o livro Capital, uma obra da colecção Imagens que Contam (Pato Lógico), já assinada por alguns dos nossos melhores ilustradores: Marta Monteiro (Sombras), André da Loba (Bestial), Catarina Sobral (Vazio), João Fazenda (Dança) e Bernardo P. Carvalho (Verdade?!). Como o nome da colecção sugere, trata-se de livros sem texto, ancorados num título de uma só palavra que dá o mote para a narrativa de 32 páginas que se segue. Ainda há muito desconhecimento (e também preconceito intelectual e falta de curiosidade) em relação a este género de picture books - ou «álbuns puros», se preferirem - que se caracterizam pela recusa do primado da palavra, durante tanto tempo responsável pela clivagem hierárquica entre o texto e a ilustração. A prová-lo, como exemplo negativo desta tendência, temos aí uma quantidade de livros palavrosos, chatos, quadrados e absolutamente irrelevantes.

Graças ao trabalho de editores e autores, entre outros agentes (e honra seja feita ao investimento continuado da actual Direcção-Geral do Livro, Arquivos e Bibliotecas), o panorama da literatura infanto-juvenil mudou muito nos últimos vinte anos, felizmente; e Afonso Cruz, com a sua vivência singular da arte e da criatividade, sem constrangimentos étarios, contribuiu para essa revolução. É um autor completo e complexo, de quem nunca sabemos bem o que esperar, e que já nos deu livros tão bons e tão peculiares como A Contradição Humana (Caminho), O Livro do Ano (Alfaguara), Os Livros que Devoraram o Meu Pai (Caminho) ou essa pequena pérola, rara nas livrarias, que dá pelo nome de Os Pássaros (APCC), só para falar da sua produção que acolhe (sublinhado meu) os leitores mais novos. A bibliografia completa de Afonso Cruz pode ser conhecida aqui.

A leitura de Capital é bastante explícita e não deixa dúvidas quanto à sujidade do chamado «vil metal», desde a primeira contaminação das personagens até à apropriação absoluta do Sistema Solar. A página dupla das guardas finais evidencia, simbolicamente, os resultados desta digestão devoradora, com o porquinho-mealheiro a flutuar no lugar onde antes estava a Terra. Limpinho. Para os professores e mediadores de leitura que queiram trabalhar esta obra recém-premiada de Afonso Cruz, sugiro que o façam em complemento com um excelente texto dramático, levado à cena no Centro Cultural de Belém e agora fixado em livro: A Cruzada das Crianças - Vamos Mudar o Mundo (Alfaguara).

Inspirada num acontecimento adstrito aos «ficheiros secretos» da História, um movimento semiespontâneo de milhares de crianças e adolescentes que, em 1212, partiram em peregrinação por terras de França e da actual Alemanha, empenhados na missão insana de libertar Jerusalém dos muçulmanos, A Cruzada das Crianças - Vamos Mudar o Mundo é seguramente a obra mais política de Afonso Cruz destinada a este público. Intercalando ilustrações, notícias de jornais e fotografias de manifestações com crianças, um pouco por todo o mundo (excelente trabalho de design gráfico de Maria João Lima), é um livro de uma inteligência poética e argumentativa desconcertantes.

«Dedicado a todas as crianças que já fui», diz o autor em epígrafe, a peça parte desta possibilidade extraordinária: como seria se milhares de crianças resolvessem questionar todas as instituições e os adultos que as dirigem? Crianças para quem o território da justiça é sempre maior do que o mapa das leis; crianças para quem a semiótica e a retórica dos «crescidos» não interessa patavina; crianças que só querem respostas directas, honestas e verdadeiras:

(...)
Polícia (condescendente): Não podem andar assim, aos milhares, a reclamar coisas tão importantes.
Criança 1: Não se pode reclamar coisas importantes?
Polícia: Não têm idade para isso. Vocês não percebem.
Criança 2: Com que idade é permitido?
Polícia: A partir da idade em que sabem o que querem e não andam a brincar com as pessoas.
Criança 1: Quando ficarmos sentados no sofá sem tempo para brincar?
Criança 2: Estamos presos?
Polícia: Não estão presos. Estamos à espera dos vossos pais.
(...)

Com imagens ou sem imagens, Afonso Cruz é um autor capital. E estes dois livros só nos enriquecem ainda mais. Agora chega de trocadilhos. Vão ler.

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