sexta-feira, 12 de abril de 2013

AUTO-AJUDA PARA CRIANÇAS?



Não tenho nada contra os livros de auto-ajuda, embora a designação me soe mais apropriada para uma empresa de reboque de automóveis. Termos equivalentes, como «espiritualidades» ou «desenvolvimento pessoal», são igualmente ambíguos, o que diz muito sobre as limitações da nossa linguagem e a extensão dos nossos preconceitos. Neste aspecto, a inteligentsia tende a funcionar como as cartomantes: adivinha pela chancela. As memórias de Auschwitz escritas por Primo Levi são literatura, mas o best-seller do psicoterapeuta Viktor E. Frankl (O Homem em Busca de um Sentido), passado na mesma altura, já é outra coisa. Os estudos do comportamento animal por Konrad Lorenz não provocam a mesma desconfiança que o ensaio de Mark Rowlands (O Filósofo e o Lobo) sobre a sua longa convivência com um lobo. Alunos universitários não percebem Piaget, mas ai do professor que lhe recomende O Elemento, de Ken Robinson.

Denegrir estes livros apenas porque não são literatura é de uma desonestidade intelectual a toda a prova – precisamente porque a maior parte não pretende passar por literatura. Havendo de tudo, desde o muito bom ao execrável, como em qualquer área editorial, resisto apenas ao uso da expressão «auto-ajuda para crianças». Parece-me um contra-senso atribuir às crianças a capacidade de se «auto-ajudarem», fazendo metalinguagem sobre os seus problemas – a morte de um familiar, o divórcio, o abuso sexual, o bullying, etc. Muitos desses livros (os bons, pelo menos) falam de comportamentos, emoções, fenómenos sociais, questões filosóficas, humanidades, criatividade, valores… Porque não chamar as coisas pelos nomes?

A tentativa de juntar os dois géneros que mais vendem – a auto-ajuda e o infanto-juvenil – resulta nestes rótulos descabelados. Há pouco, vi no facebook o anúncio de um workshop de «empreendedorismo para bebés». Que será isso? Os primeiros dentes associados ao espírito de iniciativa? Lápis de cor e a gestão do risco? Cocó na fralda e o negócio da compostagem? É um mundo louco. Chamem o reboque do bom senso.

(Texto de opinião publicado na revista LER nº 123, na rubrica «Boca do Lobo»)

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