terça-feira, 30 de março de 2010

O ANO DE MARIA ALBERTA MENÉRES


Em 2009, Alice Vieira e António Mota comemoraram 30 anos de carreira literária. No que toca à escrita para crianças, Maria Alberta Menéres leva-lhes uma década de avanço – e mais, se recuarmos a 1952, ano em que publicou o primeiro livro de poesia. Foi também professora, tradutora, revisora, jornalista e directora de programas infantis na RTP. Ancorada num olhar poético sobre o mundo, a criatividade é para ela um recurso tão natural como respirar.

Das lezírias do Ribatejo para Lisboa, o mundo deu uma grande volta. Maria Alberta Menéres tinha nove anos quando a professora do colégio interno anunciou que iam fazer uma redacção. Tema: a vida. Um adulto poderia sentir-se constrangido pelo peso dessas quatro letras, mas ela, desembaraçada e com os olhos já postos no recreio, pegou na caneta e escreveu: “A vida é muito fácil. É composta por princípio, meio e fim. O princípio é nascer, o meio é a continuação e o fim é a morte. Eu agora estou na continuação.”

Passaram-se 70 anos e a redacção sobreviveu intacta, tal como muitos outros textos de criança, figurando agora em letra manuscrita no seu mais recente livro: Camões, o Super-Herói da Língua Portuguesa. Quem se interessa por grafologia, o estudo da relação entre a escrita e a personalidade, poderá notar um certo espaçamento entre as palavras; a tendência para formar correntes “de ar”, essas linhas verticais que na gíria se designam por “chaminés”. Segundo a grafologia, significam propensão para a evasão, o sonho, o devaneio. É claro que pode ser tudo pura coincidência, mas na sala onde conversamos está agora uma das filhas de Maria Alberta Menéres, a cantora e compositora Eugénia Melo e Castro, que vai confirmar não andarmos longe da verdade.

“Na forma de estar da minha mãe há uma linha muito ténue entre a imaginação e a realidade”, afirma. “Ela manteve sempre aquele lado infantil e fantasioso; vive num mundo à parte que não é o mundo real das pessoas. À volta dela há sempre uma coisa maravilhosa a acontecer – ou então uma coisa terrível. Tudo a impressiona vivamente.” Por exemplo, o tempo que faz lá fora. Um dia de chuva torrencial ou um dia de calor insuportável têm o dom de lhe exaltar a imaginação. “Se ela sabe que há um incêndio em Braga telefona-me, apesar de saber que eu estou em Lisboa. Ou então, se há um incêndio em Braga e outro em Faro, ela telefona-me porque imagina que eu estou nos dois!”

Eugénia Melo e Castro lembra o clima de liberdade e de espontaneidade que viveu em criança, com um pai (o poeta, escritor e professor Ernesto Manuel de Melo e Castro) e uma mãe que se “encantaram um com o outro por causa da poesia”, na praia da Foz do Arelho. Juntos, foram responsáveis pela organização de várias edições da Antologia da Novíssima Poesia Portuguesa. Juntos, eram os pais que muitas crianças sonhariam ter. Conta ainda Eugénia Melo e Castro: “O meu pai dava-me os parabéns quando eu era repreendida no colégio. E a minha mãe era diferente das outras, muito mais compreensiva, mais conversadora, mais tolerante…”. “Mas isso era bom, não?”, perguntamos. “Essa é a parte boa. A parte má é que havia certas coisas práticas, como estrelar um ovo ou fritar um bife, que ela não sabia fazer. Ainda hoje não sabe.”

Sentada no sofá da sala, numa das poucas casas de Lisboa que sobreviveram ao terramoto de 1755, Maria Alberta Menéres ouve e diz que sim com a cabeça, sorrindo e queixando-se – sem se queixar – de que as filhas a conhecem demasiado. Só por “prescrição familiar” deixou há pouco tempo de fazer visitas às escolas, sempre conduzindo sozinha e chegando a entrar em estradas por inaugurar... Em Agosto que vem completará 80 anos, mas o riso e a leveza do corpo ainda são os da miúda traquina que diz ter sido. A mesma que convenceu as colegas do colégio de que sabia voar. “Mas era só às sextas-feiras, às seis da tarde”, conta. “A certa altura mudei para as quartas-feiras, às quatro. Claro que tinha de arranjar maneira de nunca estar presente àquela hora, para disfarçar.”

Mas numa certa quarta-feira não encontrou desculpas e deu por si no meio de um coro de meninas e de freiras que gritavam: “Alberta, são quatro da tarde! Voa, voa, voa!” E a Alberta subiu uns metros acima do quadro negro e saltou para o vazio, terminando a sua ousadia renascentista com um pé partido e um mês de cama na enfermaria. Muito mais tarde, quando estava para se casar com E. M. de Melo e Castro, algumas amigas dele comentaram, divertidas: “Ah, mas vais casar com a Alberta-que-voa?!”. Nem mais.

“Eu era tremenda. Nasci em Vila Nova de Gaia e fiz trinta por uma linha, num jardim muito grande que tínhamos. Depois vim para o campo, para a herdade que era do meu avô, perto de Coruche, e continuei a fazer distúrbios. Até nos colégios religiosos onde andei, nem que fosse só por espírito de contradição. Muito do que eu escrevi tem a ver com essas tropelias. Nunca fui capaz de escrever nada que não tivesse uma base vivida e verdadeira.” Estamos a falar de mais de 60 livros para crianças publicados desde o final da década de 1960, abarcando os géneros do conto, da poesia, do teatro, da novela e da banda desenhada – uma obra extensa que, em 1986, foi recompensada pelo Grande Prémio Calouste Gulbenkian de Literatura para Crianças. Foi, talvez, o ponto alto no reconhecimento da qualidade que sempre procurou imprimir aos seus textos. “Foi importante, sim. Mas eu não ligo muito a prémios, porque há sempre um cerimonial nesse tipo de coisas a que eu não acho graça. Gosto mais de ser eu.” Ela, Maria Alberta Menéres. A Alberta-que-voa.


Camões, o herói que se segue

No mês em que se comemora o Dia Internacional do Livro Infantil (2 de Abril) chegará às livrarias o novo título da Biblioteca Maria Alberta Menéres: Camões, o Super-Herói da Língua Portuguesa (ASA). Dirigida ao público que fez de Ulisses um dos best-sellers da literatura infanto-juvenil em Portugal (600 mil exemplares vendidos e 35 edições desde 1989), Camões… é a biografia de um dos poetas de eleição da escritora. “Li muitos livros; uns diziam uma coisa e outros diziam outra, mas eu tive de chegar à minha versão, assumindo o que me parecia mais certo”, diz. Conciliando a narrativa de cariz biográfico com excertos da lírica camoniana, a obra é enriquecida pelos desenhos e aguarelas de dois irmãos, Fernanda e José Fragateiro, ambos ilustradores e artistas plásticos. Mas não é a única particularidade: há quatro ou cinco anos, Maria Alberta Menéres concluiu o manuscrito e guardou-o numa gaveta. Depois, esqueceu-se dele. Até que a família o descobriu, por acaso. É provável que haja mais tesouros escondidos. As buscas continuam.


De Vickie ao Dartacão

Lembram-se do Vickie, do Marco, do Verão Azul e do Dartacão? E de muitas outras séries que foram a razão de viver de tantas crianças, aos sábados e domingos? As gerações que estão agora entre os trinta e tal e os quarenta e poucos anos devem tudo a Maria Alberta Menéres, já que foi ela a Directora do Departamento de Programas Infantis e Juvenis da RTP, de 1974 a 1986. Juntamente com uma das equipas “mais motivadas e produtivas da casa”, não se limitava a escolher os programas, mas traduzia, escrevia os guiões, dava títulos e nomes às personagens. A julgar pelas legendas de um filme que esteve há pouco em cartaz, ainda hoje há quem pense que Dartacão é a tradução portuguesa de D’Artagnan, um dos mosqueteiros de Alexandre Dumas.

(Texto publicado na edição de 20 de Março da Notícias Sábado – revista do DN e JN. Também pode ser lido no site do DN e no blogue de Eugénia de Melo e Castro, respectivamente, aqui e aqui)

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